Os escândalos financeiros da Enron, Worldcom e, mais recentemente, da Parmalat, expuseram a falta de ética e transparência na elaboração e divulgação de balanços das empresas. A quebra dessas multinacionais, que causou pesadas perdas nos países em que atuavam, acirrou as discussões sobre os mecanismos oficiais de controle financeiro e apontou a necessidade de novas normas para coibir a maquiagem contábil no Brasil. Mas, afinal, o que mudou na prática a partir dos tremores observados pelo mercado?
Algumas medidas, de fato, foram tomadas. Este ano já começa a vigorar, por exemplo, o rodízio de auditorias determinado pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) para as empresas que fazem a apuração das contas de uma mesma companhia por mais de cinco anos. Isso quer dizer que uma empresa que tiver seu balanço analisado por uma mesma auditoria durante esse período terá de trocá-la já a partir do relatório deste ano, a ser publicado em 2005. Outra decisão, essa emanada do novo Código Civil, estabeleceu a co-responsabilidade para auditores, contadores e empresários nos casos em que ocorram irregularidades nos balanços e relatórios de empresas. E, a exemplo do que ocorre em muitos países, quem dolosamente fraudar os resultados de uma empresa poderá pegar cadeia. A pergunta que fica no ar, no entanto, é a seguinte: essas ações seriam suficientes para impedir as fraudes e reduzir os estragos na fé dos acionistas? "Há uma primeira constatação a fazer para que possamos precisar essa questão", ressalva Fernando Alves, presidente da Pricewaterhouse Coopers. É que no fundo não estamos lidando com uma questão de fraude contábil.
O que aconteceu nesses escândalos financeiros foi uma questão corporativa e não uma simples fraude.
Ou seja: naqueles casos houve uma grande deterioração da ética empresarial, e vários atores estiveram envolvidos, desde os auditores até membros corporativos das companhias. A redução do problema para uma questão meramente contábil não nos dá condições para analisar o problema como um todo.
Alves sustenta que o primeiro item que deve constar do código de conduta dos agentes de mercado é o espírito de transparência, sem o que não será possível restaurar a confiança pública perdida. "Querer criar um mercado sem fraudes é como querer enxugar gelo", compara o advogado José Gabriel Assis de Almeida, responsável pelo setor societário contratual. Não importam os mecanismos de controle.
Se houver alguém disposto a fraudar, sempre haverá crime. É evidente que normas rígidas podem dificultar as ações fraudulentas. Mas ainda assim elas existirão. Antes de ser uma questão de ordem legal, a fraude é uma questão educacional e social. Quando se fala em ética, fala-se em governança corporativa, que é um novo nome para uma idéia antiga que está na Lei das Sociedades Anônimas. Se a lei fosse cumprida ao pé da letra, a ética estaria resguardada", acredita.
Voto vencido
O Instituto Brasileiro de Executivos de Finanças (Ibef) tem uma posição bastante crítica sobre a decisão da CVM de inserir o rodízio entre as empresas de auditoria. Voto vencido nas discussões que antecederam a decisão, Marcos Chouim Varejão, diretor executivo do instituto, advoga a idéia de que o rodízio foi uma medida extremamente prejudicial.
"A simples troca da auditoria não seria suficiente para moralizar o mercado", argumenta. "Nós defendemos, isso sim, o rodízio dos profissionais responsáveis pelas auditorias. Isso porque se você tem um sócio que depois de um determinado período passa a responsabilidade da auditoria para outro sócio, você está preservando um dos pontos mais importantes da auditoria, que é o conhecimento das complexidades da empresa Com o rodízio, perde-se a expertise", diz Varejão. Ele acredita que a qualidade das auditorias deve até piorar com a decisão da CVM. Dá como exemplo a Petrobrás.
"Imagine a complexidade de uma auditoria numa empresa desse porte. Para o auditor começar a entender os mecanismos da estatal, por melhor que seja esse profissional, vai levar uns dois ou três anos, no mínimo. E quando afinal ele estiver a par de todos os processos operacionais, vai ter de dar lugar à outra auditoria. Ou seja: ninguém vai querer investir em mão-de-obra qualificada para depois perder o cliente.
"Nosso principal custo é a mão-de-obra", "Fica difícil imaginar que uma empresa faça investimentos nessa área se depois de três anos poderá ficar sem o cliente para o qual formou gente especializada." Para ele, a própria fiscalização da CVM, um maior treinamento dos auditores e uma Justiça mais ágil na aplicação de penalidades aos fraudadores de balanços seriam ações muito mais eficazes do que o rodízio. Estudo recente do Fundo Monetário Internacional (FMI) sobre a estabilidade financeira global (Global Financial Stability Report) também defende maior presença fiscalizadora dos órgãos reguladores, ao afirmar que "fortalecer as reguladoras nacionais de valores mobiliários ajudaria a melhorar a supervisão e caminhar rumo à aceitação recíproca dos padrões de regulação e supervisão". O estudo também alerta para a necessidade de maior fiscalização das empresas de auditoria por parte do governo. "O rodízio determinado pela CVM é um belo exemplo de uma norma bem intencionada mas equivocada em seu embasamento técnico, já que parte da premissa de que as relações entrem a auditoria e a empresa é suscetível de desvios", afirma Fernando Alves, da PwC. "Com isso, a CVM criou um processo de interrupção. Mas se há um vício relacional, ele existe entre as pessoas. No mundo todo o rodízio é realizado entre as pessoas, e não ocorre entre as empresas de auditoria."
Essa visão não é compartilhada por José Francisco Boucinhas, um ardoroso defensor do sistema implantado pela CVM. "Sou plenamente favorável a esse tipo de mudança na medida em que a profissão se mostrou incapaz de se auto-regular, redundando nos escândalos financeiros nos Estados Unidos e, mais recentemente, da Parmalat. Aqui, desde 1996, o Banco Central impôs o rodízio de auditores às instituições financeiras. Agora chegou a vez das empresas não-financeiras. Do ponto de vista do mercado, a retomada da credibilidade exige a garantia de independência dos auditores e é neste contexto que o rodízio tem de ser entendido. Se apenas alguns países o adotam, não importa", diz.
Para Boucinhas, uma das poucas vozes favoráveis ao rodízio, o mercado de auditorias no mundo é dominado por quatro grandes empresas que querem manter as suas posições, mesmo que isso leve à deterioração da confiança no mercado de capitais.
"Acaba sendo uma ação entre amigos", sinaliza.
Segundo ele, o caso Enrom foi analógico ao atentado terrorista de 11 de setembro contra os Estados Unidos na área das auditorias, e há necessidade de uma retomada da credibilidade do mercado nas empresas do setor. "O rodízio seria um dos caminhos", acredita. Péssimo costume Portela Assis de Almeida, divide a questão da maquiagem de balanços e moralização do mercado em duas etapas. A primeira, sobre a aplicação das leis já existentes. E a segunda, sobre a proteção efetiva dos acionistas contra as fraudes pelas leis.
"No Brasil existe um péssimo costume legislativo: sempre que há um problema, cria-se uma nova legislação para resolver esse problema", observa ele. "Embora eu ache que, em si, o rodízio não é ruim, entendo que não era preciso fazer isso para atingir o objetivo comum de dar mais transparência e ética aos balanços. Era só ter controle mais rígido sobre os auditores independentes", aponta.
Para ele, a legislação atual é suficiente para minimizar fraudes, especialmente com a entrada em vigor do novo Código Civil, que criou a co-responsabilidade de empresários, auditores e contadores e conferiu maior proteção aos acionistas minoritários.
Nesse caso, entende ele, a lei foi até excessiva. "No caso dos minoritários, essa maior proteção dada pela lei está criando distorções no mercado", ressalva. "Nos últimos tempos têm surgido pequenos investidores que lançam mão da legislação para tentar conseguir coisas que não lhes são de direito.
Ou seja, está havendo abuso de direito. Há casos de acionistas minoritários profissionais", explica Assis de Almeida.
Legislação mais eficaz
Há um certo consenso de que a legislação brasileira que pune fraudes nos balanços tornou-se mais rigorosa e de que os órgãos reguladores ficaram mais atentos depois dos escândalos da Enrom, WorldCom e Parmalat, embora ela seja ainda bastante branda em comparação com a legislação norte-americana. No mês passado, por exemplo, um auditor independente foi condenado a 24 anos de prisão por maquiar balanços nos Estados Unidos.
No Brasil, a questão central é a morosidade da Justiça em julgar e punir os culpados, “lembra Sérgio Machado.” Em outros países, a conclusão dos processos é bem mais rápida. Veja, por exemplo, o caso da Enron. Já ocorreram punições, e o problema está praticamente solucionado. O mesmo aconteceu no caso Parmalat: os culpados foram rapidamente indiciados e presos, inclusive o dono, Calisto Tanzi, e toda a diretoria da empresa, logo após o escândalo vir à tona, em dezembro do ano passado. Mas entre nós há casos que se arrastam há anos, sem solução.
Outro fator que poderá tornar mais transparente as demonstrações financeiras das empresas é a padronização internacional das regras contábeis em função do processo de abertura da economia. Hoje o Brasil está desenquadrado em relação às normas internacionais, mas o Conselho de Contabilidade e o Ibef já criaram um grupo de trabalho exclusivamente para estudar o assunto e propor alternativas que permitam maior nivelamento. "À medida que há globalização econômica, a tendência é de uma globalização de regras", diz Assis de Almeida. "Se uma empresa trabalha em vários marcados simultaneamente, ter uma regra única é muito mais positivo. Se elas forem globais, o ganho operacional será igualmente bem maior. Por exemplo: um contrato para a concessão de exploração de petróleo é semelhante no Brasil, nos Estados Unidos, no México, no mar do Norte ou na Nigéria. No entanto, nunca chegaremos a um padrão único de contas devido às diferenças culturais entre os países". Assis de Almeida acha que essas diferenças devem ser levadas em conta, e lembra que o Brasil já chegou a adotar, por exemplo, a correção monetária do capital das empresas, algo impensável em outros países. |